Por Carlos Cesar Meireles Vieira Filho
Artigo publicado originalmente na LOGWEB
“A fome dos outros condena a civilização dos que não têm fome.”
Dom Hélder Câmara (1909 – 1999)
Em 24/02/2022, o Profissão Repórter da Rede Globo trouxe um levantamento da ONU (Organização das Nações Unidas) o qual mostrava que o Brasil desperdiça por ano cerca de 27 milhões de toneladas de alimentos. Estima o estudo das Nações Unidas que 80% desse desperdício acontece no manuseio, transporte e centrais de abastecimento, ou seja, na cadeia logística, de suprimentos e de distribuição.
Para trazer um melhor entendimento ao que isso representa, valho-me de um outro estudo, o da nutricionista Daniela Silveira, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), o qual aponta que uma pessoa adulta consome, por ano, algo como uma tonelada de comida, cerca de três quilos por dia, incluindo alimentos sólidos e líquidos. O estudo da nutricionista baseia-se em dados do Instituto de Medicina da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, os quais indicam que um adulto precisa ingerir, por dia, 2.900 calorias (mais de 1 milhão por ano), considerando um cardápio balanceado para chegar nesse resultado. Alerta a profissional que para a realização dessa análise, levou-se em conta as necessidades calóricas de um indivíduo, as quais variam de acordo com o sexo, peso, altura, idade e atividade física de cada pessoa.
É, portanto, assustador, que o desperdício em parte do processo da cadeia de suprimento e de distribuição (supply chain) seja responsável por deixar de alimentar, anualmente, cerca de vinte e dois milhões de pessoas e que, o que representa, em boa parte, o número de pessoas no Brasil que viviam, à época da pesquisa, abaixo da linha da pobreza, de acordo com o FGV Social, relatado na matéria da CNN Brasil de 07/10/2021. Os números de hoje são ainda mais estupefacientes!
Pesquisa ainda mais recente, publicada no último dia 08 de junho, realizada pelo Rede Penssan (Instituto Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), revela que 58,7% da população brasileira, ou seja, mais de 123 milhões de cidadãos brasileiros vivem com insegurança alimentar. Isso equivale aos piores níveis registrados nos anos de 1990 (três décadas atrás). A metodologia da pesquisa considerou a EBIA (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar), a mesma utilizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para mapear a fome no país.
Esse estudo corrobora os achados pela FGV Social em 2021, quase um ano depois, mostrando o aprofundamento da situação. “A pandemia agravou a fome no Brasil, que tem atualmente 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer. São 14 milhões de brasileiros a mais em insegurança alimentar grave em 2022, na comparação com 2020”.
Seis em cada dez domicílios não conseguem manter acesso pleno à alimentação e possuem alguma preocupação com a escassez de alimentos no futuro, sendo as regiões Norte e Nordeste as mais impactadas, é o que revela o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgada pela Rede Penssan.
Diante de tamanha gravidade e calamidade nacional e mundial, dado que vivemos em um mundo no qual uma parcela considerável de pessoas passa fome, faz-se necessário ponderar o que é desperdiçado mundialmente somente em relação a alimentos dentro da cadeia logística, e o que podemos e devemos – urgentemente – trabalhar para reverter essas marcas.
Segundo estudos das Nações Unidas e da FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura), aproximadamente 30 a 40% dos alimentos produzidos são desperdiçados dentro da cadeia logística, ou seja, mais de 1⁄3 de todos os alimentos produzidos globalmente vão parar no lixo. Isso equivale a uma soma aproximada de US$ 1 trilhão, ou seja, em níveis globais, desperdiça-se 1,3 bilhões de toneladas de alimentos, enquanto boa parte das pessoas no mundo passa fome. Fazendo um paralelo com o estudo da nutricionista brasileira da Unifesp, nessa toada, cerca de um bilhão e trezentas milhões de pessoas poderiam se alimentar caso o desperdício de tantos alimentos fosse eliminado ou, responsavelmente mitigado!
Os amigos leitores de pronto perguntariam: onde estão os desperdícios na logística?
Primeiramente em erros de planejamento. Não estamos acostumados a ter em mãos estudos de demanda precisos, origem e destino de carga. Desta forma, começamos a proceder, produzir e processar com erros e vícios já de origem.
Uma outra causa estrutural são os defeitos nos equipamentos de transporte, de movimentação, de armazenamento e de produção. Perdas no processo e o refugo destes, somam-se a esse quantum de desperdício.
A falta de capacidade técnica de empresas (tanto na produção quanto na cadeia logística, de transportes, armazenamento etc) e o baixo investimento em capacitação profissional, também são indutores significativos para o agravamento dessa situação.
Ativos de infraestrutura (rodovias, ferrovias, estações de transbordos, portos, centrais de armazenamento etc) degradados, insuficientes e inadequados, somando-se à falta ou erro de planejamento para que se conectem os vários modais e centros de produção, logística e consumo, consistem em vilões vigorosos para que tais perdas ao longo de toda a cadeia se configurem!
Logística, como sabemos, é conectividade e integração, bem assim fluxo contínuo (lign up), além de otimização de escala e a sua correta gestão. Quando há ruptura nesse processo e fluxo, gera gargalos, e, o processo tanto a montante, quanto a jusante, vê-se penalizado pela ineficiência do sistema.
No bojo do que vimos acima, infraestrutura e logística inadequadas, desatualizadas, anacrônicas e insuficientes, baixa capacitação de gestão e de controle, dentre outras questões, são responsáveis por desperdício de mercadorias, com decorrentes vazamentos, perdas na carga e descarga, além, claro, da elevação do consumo de combustível na cadeia de valor. O resultado é o efeito entrópico disso tudo!
Da base acadêmica, sabemos que logística é a ação da entrega do produto certo, na hora e no local esperado, na quantidade correta, ao melhor custo contratado. Qualquer desvio e erro nessas funções, incorre-se em perdas vultuosas e valorosas no processo.
A parte mais sensível da cadeia de suprimentos e da logística, é a gestão dos estoques, assim, deve-se dedicar correto planejamento para o controle dos inventários e a correta gestão para que não haja excesso de estoque em armazenagem, em processo e em movimentação. O custo e o impacto nessa rubrica são, na maioria das vezes, irreversíveis!
Por isso que uma gestão logística baseada em conceito de Lean Logistics (logística enxuta = sem desperdícios) é muito relevante! O mercado, o consumidor, o cidadão, não querem, não podem e não precisam ser cobrados pelas perdas e desperdícios. O conceito de Lean Logistics foca seus esforços em eliminar os desperdícios que impedem a eficiência, eficácia e rentabilidade da logística em todo o seu ecossistema, trazendo benefício coletivo, para todos!
Independentemente de haver maior ou menor aderência à forma como as organizações e o mundo corporativo têm tratado a questão dos programas ESG (Environmental, Social and Governance), traduzindo do inglês, ASG, referindo-se à Ambiental, Social e Governança, pensar no que aqui se viu provocado, é, salvo melhor juízo, uma questão – no mínimo – humanitária.
O que as organizações têm contemplado como programas ambientais no vasto conceito de sustentabilidade? O “S” do acrônimo, ao que se verifica, talvez seja o menos trabalhado e considerado! Nesse contexto, como poder-se-ia incorporar o “G” da sigla que tanto vem sendo utilizada na reversão dessas perdas?
Findo este artigo sugerindo que todos nós que atuamos no ecossistema da logística e do supply chain (portos, retroportos, transportadoras em quaisquer modais, operadores logísticos, portuários, armazenadores, movimentadores de carga, distribuidores, produtores e embarcadores) voltemos nossas atenções e comprometimentos, não só no que concerne às operações, à gestão, à supervisão, ao controle, à regulação, mas também na observância das políticas, programas e ações públicas e privadas, para que juntos consigamos trabalhar na reversão desse tema que tanto agride o mundo, o nosso país, e a nossa gente!
Carlos Cesar Meireles Vieira Filho é mestre em administração de empresas pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), com 35 anos de experiência no setor de logística empresarial, planejamento estratégico e novos negócios. Certificado como conselheiro pela FDC (Fundação Dom Cabral), e MBA pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) em Economia e Gestão: Relações Governamentais. É co-fundador da ABOL (Associação Brasileira de Operadores Logísticos), tendo sido seu CEO por nove anos. É membro do Conselho Brasil Export, é conselheiro do Frotas & Fretes Verdes e da Aspen (Assembleia Permanente pela Eficiência Nacional) do IBesc (Instituto Besc de Humanidades e Economia), membro associado da Actib (Associação dos Conselheiros TrendsInnovation do BrasilAssociação . É vice-presidente da Alalog (Associação Latinoamericana de Logística), conselheiro e consultor de empresas nas áreas de estratégia, M&A (Mergers and Acquisitions) e desenvolvimento de novos negócios. É colunista do BE News e da LogWeb. É sócio-diretor da Talentlog – Consultoria e Planejamento Empresarial Ltda.